Couro de piolho
Era uma vez uma princesa que estava sendo penteada pela ama
quando esta encontrou um piolho no pente. A princesa ficou tão admirada com
aquele achado que resolveu criar o piolho numa caixinha. O piolho cresceu tanto
que, mudando de caixas, estava enorme. A princesa mostrou ao rei seu pai que
mandou matar o bicho e tirar-lhe o couro para fazer o assento de uma cadeira
para seu salão. Ordenou que a rainha e a princesa guardassem todo segredo e
disse que dava a mão da filha em casamento a quem adivinhasse de que era feito
o forro da cadeira real.
Como a princesa era muito bonita e rica, correram moços de
todas as partes para a prova. Nenhum acertou. Os meses passavam e a princesa
estava zangada com tanta demora no casamento. Primeiro vieram rapazes das
primeiras famílias e depois os de menor fortuna, seguidos pelos pobres.
Centenas e centenas de homens olhavam e tornavam a olhar a cadeira e não havia
jeito em descobrir a que animal pertencera aquele couro esquisito.
Bem longe da cidade morava uma velha que tinha um filho
chamado João, meio amalucado, mas esperto. João, sabendo da promessa do rei,
resolveu tentar a fortuna. A mãe debalde aconselhou-o a desistir daquela
loucura. João nem ouviu. A velha preparou a matalotagem e o rapaz pôs-se a caminho.
Andou, andou, e quando anoiteceu estava perto da cidade, mas
achou ser melhor dormir no mato. Amarrou a rede a uns galhos, fez o fogo, assou
carne e ia comer quando apareceu um velhinho muito trêmulo, dizendo que estava
morto de fome e de cansaço.
— Não faça cerimônia, homem de Deus, vá comendo e descanse.
O velho sentou-se, comeu, bebeu água, descansou. Lá para as
tantas, João, com sono, e tendo apenas uma rede ofereceu ao velho.
— Não quero. Deus lhe pague por tudo. Quero dar uma
lembrança. Leve estes três fios da minha roupa. Quando se vir agoniado, queime
um deles e será valido.
Disse estas palavras e meteu-se pelo mato. João dormiu a
noite inteira e pela manhã desarranchou-se e botou o pé na estrada com vontade.
Chegando, procurou o palácio do rei e um lugar para pousada.
Deram-lhe agasalho bem pertinho do palácio. João andou rondando a casa do rei,
vendo o movimento de gente que subia e descia as escadas.
No outro dia foi ao palácio e disse que queria adivinhar de
que era feita a cadeira do rei. Mandaram-no subir, com outros rapazes. João,
todo acanhado, ia suando frio. Quando entraram no salão, estava o rei, a
rainha, a princesa e muitos homens importantes e bem vestidos. Mostraram a
cadeira bem no meio da sala. João foi olhando, de longe, e ouvindo as palavras
dos outros.
— É couro de cobra.
— Não é!
— É couro de rato.
— Não é!
— É couro de lagartixa.
— Não é!
O rapaz esgueirou-se para o vão de uma janela, puxou um dos
fios, queimou-o dizendo: "Quero saber de que é feito o couro daquela
cadeira" -- e imediatamente veio à idéia a imagem do piolho. Ficou
alarmado com tamanho absurdo, mas tendo confiança no velhinho, avançou para o
meio da sala e esperou sua vez. Um criado chamou-o e o rei perguntou-o de que
era feito o forro da cadeira.
— É couro de piolho!
— É mesmo. Acertaste!
Toda a gente bateu palmas e abraçou o rapaz. A princesa não
achou graça naquele moço mal vestido, sujo e com um ar desajeitado e palerma.
Houve um jantar com todas as variedades de comidas. Depois,
o rei chamou João e lhe disse:
— Está tudo muito bem, mas para você casar com a princesa
deve cumprir outro preceito. Amanhã, pela manhã, receberá cem coelhos e deve
levá-los para o campo e voltar pela tardinha, sem faltar um só.
João ficou certo de que guardar coelhos é o mesmo que juntar
moscas. Não ficaria um só para exemplo. Mas mesmo assim aceitou e dormiu num
quarto todo preparado. Pela manhã, deram café e outras cousas e cem coelhos.
Quando o rapaz saiu pelo portão do palácio, não via mais um coelho que fosse.
Tinham fugido todos.
João andou até o campo, deitou-se debaixo de uma árvore e
queimou o segundo fio que tivera de presente.
— Quero um jeito para guardar esses coelhos!
Palavras não eram ditas, apareceu uma gaita, pequenina. João
pegou e soprou. Saiu um apito estridente. Imediatamente os coelhos vieram
correndo como uns loucos e se enfileiraram como soldados diante do rapaz. João
espantou-os para que fossem comer. Pela tardinha, apitou na gaitinha, juntou os
cem coelhos e tocou-se para o palácio. Assim que chegou, mandou dizer ao rei
que contasse os bichos. Contaram. Estavam todos os cem.
No outro dia voltou com os cem coelhos, porque a princesa
estava maldando uma diabrura para não casar com João. Este chegou, deitou-se
debaixo da árvore e os coelhos sumiram-se, pulando para todos os lados.
No pino do meio-dia, apareceu uma das criadas da princesa,
toda bonita e trajada. Vinha comprar um coelho por todo o dinheiro que fosse. O
rapaz, desconfiando, teve uma idéia. Disse que vendia o coelho por um beijo.
Vai a criatura aceitou o preço, dando o beijo. João entregou o coelho e a moça
segurou o bichinho nos braços e botou-se para casa, bem depressa. Logo que João
a perdeu de vista soprou a gaita e o coelhinho debateu-se com tanta força que
arranhou a moça e voltou como um raio para junto dos outros.
A moça chegou triste e contou à princesa que não pudera
trazer o coelho. A princesa disse que ela não tinha sabedoria e mandou outra.
Aconteceu o mesmo, sendo que o preço subiu para dois beijos. A segunda moça
voltou sem o coelho e a princesa veio, ela mesma, decidir a questão.
Encontrou João na sombra e puxou conversa, com muito rodeio
e acabou falando na compra de um coelho.
— Só vendo se a princesa minha senhora me der a sua camisa.
A princesa zangou-se mas não tendo outro remédio foi para
trás de uma árvore, tirou a camisa e a deu ao rapaz, recebendo o coelho.
Enrolou o bichinho numa toalha e veio voando para o palácio. Nem passou o
portão e já o coelho, ouvindo o apito da gaita, arrancava-se da toalha, e
voltava como uma flecha. A princesa nem olhou para trás, de furiosa.
De tarde o rapaz voltou e entregou os cem coelhos. O rei
mandou-o chamar e disse:
— Amanhã eu reúno a corte toda e quero que você traga um
saco cheio de mentiras.
João ficou desesperado com essa lembrança. Trancou-se no
quarto e queimou o último fio:
— Quero um saco cheio de mentiras.
Ouviu umas vozes que ensinavam o que ele devia fazer.
No outro dia, o salão estava apinhado de gente, o rei, a
rainha, a princesa e todas as criadas, espelhando de bem vestidas. O rei chamou
João, mandou entregar-lhe um saco e disse:
— Vamos, encha este saco de mentiras, na vista de todos que
aqui estão.
O rapaz pegou no saco, abriu-lhe a boca, segurando-a com a
mão esquerda e estirando a direita, como se tirasse uma fruta do pé, começou a
falar:
— Por um coelhinho fujão a criada da princesa me deu um
beijo. É mentira ou não?
— É mentira! — gritou a criada que dera o beijo.
João fez que metia uma coisa dentro do saco e declarou:
— O saco está enchendo.
— Por um coelhinho fujão, a outra criada da princesa me deu
dois beijos. É mentira ou não?
— É mentira! É mentira! — gritava uma outra criada, que dera
dois beijos.
— Saco meio! — dizia o rapaz, e gritando:
— Por um coelhinho fujão, a princesa minha senhora me deu
sua camisa. É mentira ou não?
— É a mentira maior do mundo! — gritou a princesa.
— Saco cheio! Saco cheio, rei meu senhor!
— É verdade! — declarou o rei, — o saco está cheio. Falta
saber se a princesa quer mesmo casar com você.
João olhou para a princesa, e esta que já estava gostando
dele, balançou a cabeça que sim. Casaram e foi uma festa de arromba. Eu lá
estive e comi de tudo e trouxe uma compoteira de doce para vocês, mas na
ladeira do Conclis dei uma queda e quebrei o nariz...
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil.
Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986
(Reconquista do Brasil, 2ª série, 96), p.106-109) — com Agnes Abreu.
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